segunda-feira, 4 de julho de 2011

Aprendizagens do ECA



Segue o conto que inspirou os quadrinhos...

APRENDIZAGENS DO ECA
Edilaine Vieira Lopes

Foi em 2003, ou melhor, março de 2003. Eu acabara de sair do magistério e estava encarando meu primeiro desafio como educadora:meu estágio! Estava em uma humilde escola municipal, próxima à minha casa, onde estudei até a quarta série, e agora dividia espaço com meus antigos (e finalmente colegas) professores.

A segunda série, turma na qual desenvolvi vários projetos durante o estágio, era encantadora! Crianças pobres e simples, mas que, ao final de cada aula, ajudavam-me a carregar os livros e as caixas de leitura até minha casa, a duas quadras da escola.

Todas aquelas crianças eram especiais para mim.Mas havia um menino, de apenas oito anos, baixinho, magro, quase desnutrido, amarelinho e de roupas rasgadas, que mexeu muito comigo. Eu sabia que outro motivo trazia-o à escola, além do estudo: a fome. Bastava vê-lo chegar e tomar com vontade seu copo de leite com pão, presenciar sua terceira repetição diária de feijão ou polenta com molho durante a merenda ou apenas acompanhar sua triste volta para casa, com uma banana ou uma laranja na mão.

Eu já havia estudado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) inteirinho durante o magistério. Sabia que me deparararia com casos em que crianças são maltratadas ou abnegadas de seus direitos. Só não sabia que seria assim, tão traumático, como foi no meu estágio.

Um dia cheguei à escola, como de costume, cedo da tarde, logo após o almoço. Para minha surpresa, lá estava ele: o meu aluno! Logo naquele dia de chuva, com a temperatura caindo dois graus a cada hora, ele resolveu ir à aula... Que milagre! Nunca ia quando chovia muito, pois tinha poucas roupas e apenas um tênis velho e rasgado que a família “sorteava” entre os cinco irmãos durante a semana de chuva, fazendo com que cada um deles fosse num dia da semana, pelo menos para garantir a comida que ganhavam da escola.

“Estudar pra quê?”, como eles mesmos falam por lá. É costume mandar os filhos para ganhar o que comer e voltar para casa de estômago cheio. O que não ocorria em semanas de chuva, mas naquele dia, sim. Aproximei-me e perguntei:

– Veio à aula hoje, Samuel? Não está com frio, só de chinelos?
De cabeça baixa, mal me olhou e respondeu rapidamente, desviando de minha direção, o que não era de costume:
– É, meu irmão também veio, tá com meu tênis, “sora”.
Quando virou seu rosto, vi seu olho inchado, roxo, e não me contive:
– O que houve com seu olho?
Silêncio.
– Nada, não, sora, eu caí no banheiro.

Eu sabia que a humilde casa, que mal abrigava todos os irmãos juntos em um único cômodo, não tinha banheiro grande, a ponto de se cair num tombo. Mas respeitei seu silêncio e fomos para a sala de aula. Lá, o inevitável. Bateram na porta:

– Vim buscá meu filho. Ele vai voltá pra casa.
– Não vô! Quero ficá.
– Tá frio, vamo embora, eu tô mandando.

Apavorada com a mãe de olho roxo, gritando com o filho na porta, deduzi que ela não podia ter caído no banheiro também... Na tentativa de me tranqüilizar, os colegas de Samuel falaram:

– Xiiii! Acho que eles vão fugir de novo...
– Fugir de quem? Por quê? – perguntei apavorada.
– Do pai, ué? Ou a senhora não sabe que ele é bebum? Chega em casa e bate na mulher. Daí, sobra pro Samuel também.

Imediatamente, procurei a coordenação pedagógica, que me disse ser comum essa atitude também em outras famílias de alunos da escola. No outro dia de manhã, inconformada, fui até a casa de Samuel e, para minha surpresa, encontro a irmã mais velha, que não me diz para onde levaram meu querido e indefeso aluno. Pergunto pelo pai. Ela desconversa, diz que não está. Escuto barulhos na casa. Em tom de advertência, menciono o ECA, dizendo que os direitos de Samuel estavam sendo desrespeitados e que acionaríamos as autoridades caso ele voltasse à escola com vestígios de agressão.

Passaram-se alguns dias. Era uma manhã fria, tipicamente gaúcha. Daquelas em que acordamos cedo, só para ficar comendo pinhão e tomando chimarrão à beira do fogão à lenha. Fui à escola e lá encontrei Samuel, acompanhado do pai, que me disse:
– Obrigado por cuidá do meu filho.

Sem palavras e tomada de ódio, ouvi Samuel, ainda com um tom roxo em torno dos olhos, contar que seu pai arrependera-se e fora procurar ajuda em um grupo de apoio, o qual lhe estava aconselhando a preservar os direitos da sua família e dos seus filhos. Sem o ECA, eu não teria subsídios nem coragem de ir até aquele barraco falar com aquela gente... Mas fui, confiante na força deste poderoso Estatuto. Hoje, continuo lecionando, numa situação social um pouco diferente, em outra escola. Contudo, certas vezes, ainda me deparo com casos de abusos, para isso, não hesito: puxo o meu ECA do bolso e aponto, como se fosse um cartão vermelho na mão de um juiz em final de Copa do Mundo!

LOPES, Edilaine Vieira. Aprendizagens do ECA. In: Vários autores. Causos do ECA: histórias em retrato. O Estatuto da Criança e do Adolescente no cotidiano. São Paulo: Fundação Telefônica, 2006. p. 106-112.

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